quinta-feira, 25 de junho de 2015

MIGUEL CARDOSO

MUITO DEPOIS DOS DIAS E DAS ESTAÇÕES E DOS SERES E DOS PAÍZES


Há maneiras de usar isto em nosso proveito
e acordar
em tons de verde, rijos de ossos
mas nus
velhos e fulvos

e gastar metade do fôlego
a lavar os dentes,
voltando ao início

e pensar: isto

no tempo em que vai e vem
mais um destes outonos

isto vai

É certo que me sabia bem
um daqueles verdadeiros inícios

Mas chapinhar também é bom


[...]


À barbárie seguem-se os estendais, & etc, Lisboa, 2015.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

MANUEL DE FREITAS

O RAPAZ DA CAMISOLA

para o Manolo

O rapaz da camisola era espanhol e tinha
a minha idade (fumámos juntos
alguns charros, se é que isso vos interessa).
Estava lá, no dia em que finalmente
comprou a t-shirt do bar onde julgava
encontrar amigos, rebaixas de amor e música.
Deixou-me então uns discos, o sorriso
de sempre, truques de Pradera que incertamente
o reconduziam ao volante do pai e à
infância que passou, nos arredores de Cáceres.

Tinha vindo trabalhar, por poucos meses.
Não ganhava mal e eu, sem nunca
o dizer, talvez perdesse ainda melhor. Mas apaixonou-se
pela cidade (eu entendo). Morava na Graça,
sorria de facto muito, tornava mais próximos e comuns
os amigos que não tenho. A Ibéria, a desoras,
parecia subitamente possível – embora
a rapariga, loura, insistisse em dizer que não.

São tristes aqueles que partem e reduzem Lisboa
à vaga rotina dos escombros, ao despovoamento
dos afectos. Talvez um dia o rapaz da camisola
me telefone para que falemos de tudo
menos de poesia. Para já, gostava de lhe dedicar
um poema melhor, sem custos alfandegários, simples
como os copos que nos encostaram juntos ao balcão.


Sunny Bar, sel. de Rui Pires Cabral, Alambique, Lisboa, 2015.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

NUNO MOURA

[O MEU AMOR?]


O meu amor?
Nunca usei
tenho para lá
aquilo novo


Carimbos & Tatuagens, Lda., Debout Sur l'Oeuf, Coimbra, 2014.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

PAULO DA COSTA DOMINGOS

O VERÃO PARTIU...


O Verão partiu
E nunca devia ter vindo.
Quente foi o sol
Mas não pode ser só isto.

Tudo veio para partir,
Em minhas mãos tudo caiu,
Corola de cinco pétalas,
Mas não pode ser só isto.

Nenhum mal se perdeu,
Nenhum bem foi em vão,
À clara luz tudo arde
Mas não pode ser só isto.

A vida me prende
Sob a sua asa intacto,
Sempre a sorte do meu lado,
Mas não pode ser só isto.

Nem uma folha se consumiu
Nem uma vara quebrada...
Vidro límpido é o dia,
Mas não pode ser só isto.


A morte dos outros, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2014.