quarta-feira, 29 de abril de 2009

JOÃO ALMEIDA

MAR CALHADO E ESTE SANGUE AINDA QUENTE


saí da cidade como de uma rua sem nome
não me lembro de nada, irei ter com o que houver

levo barulho no saco preto às costas
nódoas na roupa interior
e um poema da perna de pau

a alma foi dar horas, já não regressa e virá diferente
resta matéria gorda que a água do chuveiro não levou
um buraco no chão, e má memória

há versos que chegam à cancela como cães sem dono
outros aparecem e fazem chover
também me perco e deliro


Glória e Eternidade, Teatro de Vila Real, 2009.

domingo, 26 de abril de 2009

LUÍS FILIPE PARRADO

TUDO O QUE O MEU PAI ME DISSE QUANDO, AOS 15 ANOS, DECLAREI EM FAMÍLIA QUE IRIA COMEÇAR A ESCREVER POESIA


"Antes
de te sentares
à mesa
lava bem
essas mãos."


Criatura, n.º 3, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

JOSÉ CARLOS BARROS

DO QUE A VIDA PODERIA TER SIDO


Os amigos juntam-se e falam do passado,
da música que já não se ouve na rádio,
do inverno em que choveu semanas a fio
e o rio saiu das margens para desenhar

nos troncos das árvores os círculos imperfeitos
da idade. Eles sabem para si mesmos que falam
do que nunca existiu: das mulheres
que se renderam para sempre às palavras do amor,

das perdizes caindo de asa nas encostas
iluminadas da urze, das corridas memoráveis
do vinte e cinco de abril, das tardes de domingo
que haveriam de envergonhar a uefa

se a televisão estivesse presente nas finais dos torneios
dos bombeiros voluntários. É disso que os amigos
falam: do que a vida poderia ter sido
se não fosse a filha da puta da vida que foi.


Criatura, n.º 3, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009.

domingo, 19 de abril de 2009

DIOGO VAZ PINTO

ASTROLÁBIO


Guardei o recibo, que não serve para nada.
Dados impessoais: o nosso subtotal foi de 6.35
— pediste uma água mineral, um café
e uma sandes de ovo (em que nem tocaste);
pagámos caro por estarmos ali os dois,
na cafetaria do aeroporto com uma hora inteira
só para dizer uma palavra. Tudo
processado por computador, IVA incluído.
Uma operação que teve início precisamente
às 04:55 da madrugada. Agora
temos muito tempo para nos contentarmos
por já não termos que disputar as contas,
tu pagas os teus cafés, e eu sem ti
passo bem sem café.


Criatura, n.º 3, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

JOSÉ ANTÓNIO ALMEIDA

AO ANOITECER


Sou um velho rato celibatário
– a lei não me permite casamento.

Outros encontram sem dificuldade
o universo pronto a vestir

logo de manhã, desde que nasceram.
Depois trajam todas as convenções

– que lhes assentam bem, do colarinho
às mangas, até parece que Deus

é um alfaiate por conta deles.
A nós, a melhor roupa fica mal

– em nenhuma loja vendem sapatos
que nos deixem ir noutra direcção,

nem anel que não faça propaganda
à ordem sempre «natural» do mundo.


O Casamento Sempre Foi Gay e Nunca Triste, & etc, Lisboa, 2009.

domingo, 12 de abril de 2009

NUNES DA ROCHA

CANTIGA DA TININHA DO SEIXAL


Ay eu coitada, prá qui 'stou
Ervilhaca, à espera do meu Júlio
Que está de ressaca! Muyto me tarda
O meu Júlio na Guarda.

Ay eu coitada, prá qui 'stou
De mão no cono, por meu Júlio
Que falta co abono! Muyto me tarda
O meu Júlio na Guarda.


Cancioneiro da Trafaria, & etc, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

VINDEIRINHO

I


num impulso os dedos dela percorrem-lhe o index do rosto e as
pu
pilas dos olhos fixa
mente centraram
se imemoráveis naquela planície imensurável dos dele – passou
lhe inadvertidamente a mão – dedos, palma, pulso – pelas
costas enquanto todo

um cansaço impuro, quase extraordinário, de uma avioneta
atingida
por um raio – pensa n

a quantidade de vasos de flores que tem na
varanda inconcebível e sorricanta meio
adormecida

na casa não há televisão,
na casa não existem âncoras, não há incenso e os incansáveis
navios
partiram, saíram pela porta de incêndio das traseiras em
pianinho, pé ante



Domésticos, Black Sun Editores, Lisboa, 2001.

domingo, 5 de abril de 2009

TIAGO ARAÚJO

O LUGAR DO MORTO


ao teu lado, no lugar do morto, enquanto
conduzes a conversa a uma frase sem
preparação. chegámos tarde à praia,
como a quase tudo. o vento levanta o
pó do parque de estacionamento e não
saímos do carro. não sei a resposta certa
e por isso represento mal o meu papel secundário.
limito-me a ficar em silêncio, onde
sempre me senti mais confortável.
um lugar sombrio, discreto, abrigado
e ainda assim, segundo dizem, o mais perigoso.


Livre arbítrio, Averno, Lisboa, 2009.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

A. M. PIRES CABRAL

CASA EM RUÍNAS


O xisto das paredes acolheu
os poucos desejos. O telhado
cortou os grandes frios da geada,
desviou a chuva das enxergas.
Pelos postigos entrou alguma luz.
Rezou-se e morreu-se nessa casa.

Hoje as paredes vão-se aos poucos derruindo:
aproximam-se do chão de que nasceram.
Como se se executasse nela
um antigo memento: quia petra es
et in petram reverteris.

Há muito que o vento derrubou
a derradeira telha. Caíram de podres
as vigas do telhado, e há já alguns invernos
que deram achas para arder no lume.
Quase não há vestígios de postigos –
salvo uma floreira que parece ali
um capricho escarninho.

Cumpriu-se na casa um ciclo.
Hoje não tem serventia,
salvo para alguns animais furtivos
que a ocupam e lhe pedem afinal
as mesmas funções simples
que aquele que a edificou pediu outrora.

Na sua decadência persistente,
a casa mete pena, como todos
os sonhos que algum dia floresceram
e depois se foram esfarelando.

Está visto: as casas não têm
a mesma estouvada vocação
de eternidade
que atormenta os seus donos.


Arado, Cotovia, Lisboa, 2009.