segunda-feira, 27 de outubro de 2008

MANUEL DE FREITAS

GUSTAV LEONHARDT, 2005


Às vezes, por breves instantes,
a beleza habita sobre a terra,
tão urgente e impronunciável
como o rosto em trompe l'oeil
na abóbada da igreja de São Roque.

Com isto, estarei talvez a fazer
a mesma triste figura da rapariga espanhola
que ao meu lado rabiscava poemas
dialécticos — «Argumentos» e «Contra-
Argumentos» velozmente incinerados
pela fundamentação física do génio.
Nós, poetas, só escrevemos disparates.

A beleza, dizia eu. Mas os meus pés,
o seu indiscutível peso sobre a terra,
coincidiam com o mármore da sepultura
número 44 (dois terços de paixão, outro de pó).

E aquele homem ajudava-nos a morrer
melhor.


Jukebox 2, Teatro de Vila Real, 2008.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

FERNANDO LUÍS SAMPAIO

NA MARGEM DO CORAÇÃO


Não voltes a perguntar se é isto
o destino porque não sei o que essa palavra
encobre, ou finta, ou derruba, sei
pouco do mundo para dizer isto ou aquilo.

Esta rua conduz a uma outra
que é cruzada por outra ainda. E
os ventos ali se cruzam, as vidas
também, há sempre engarrafamentos.

Mais abaixo fica o rio, apanhavas muitas
vezes o barco já de madrugada,
na manhã seguinte o percurso inverso.

Por mais que não desejes o infinito
prende-se a estes restos,
vegetação rasteira, inquietações,
e na margem do coração

perguntas de novo por que,
em tudo isso,
ninguém te repete o corpo.


Falsa Partida, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005.

sábado, 18 de outubro de 2008

HERBERTO HELDER

[DO MUNDO QUE MALMOLHA OU DESOLHA NÃO ME DEFENDO]


do mundo que malmolha ou desolha não me defendo,
nem de mim mesmo, à força
de morrer de mim na minha própria língua,
porque eu, o mundo e a língua
somos um só
desentendimento


A Faca não Corta o Fogo, Assírio & Alvim, Lisboa, 2008.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

ANA PAULA INÁCIO

[PARTIR COM OS BARCOS]


Partir com os barcos
e ferir os dedos
ao puxar das redes.
Mas o sangue, que se confundirá nas malhas, não será
ainda tão significativo como aquele que verterá o peixe
ao cair nelas.


As Vinhas de Meu Pai, Quasi, Famalicão, 2000.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A. M. PIRES CABRAL

O REINO DAS GARÇAS


Decididamente,
aqui é o reino das garças.

São elas talvez, de tão tranquilas,
a chave do enigma
deste lugar de raríssimos rumores.

Algumas já se habituaram
ao tráfego dos barcos:
olham maquinalmente,
como um obreiro que cumpre
o dever fastidioso de contar
coisas que transitam
– cestos de uvas, barcos, horas,
outras aves –,
sem ordem do patrão
para abandonar o posto de vigia.

Outras, timoratos riscos brancos,
vê-se que temem o contágio dos poetas,
põem-se em fuga,
sobrevoando os juncos.

E eu a bordo sigo as garças:
às vezes sou a que fica,
às vezes sou a que voa.


Douro: Pizzicato e Chula, Cotovia, Lisboa, 2004.

sábado, 4 de outubro de 2008

FERNANDO PINTO DO AMARAL

[TENTA LER OUTRA VEZ. NÃO TE APETECE]


Tenta ler outra vez. Não te apetece
voltar à febre alheia, à superfície
frontal da madrugada? Cada página
destapava outra vida, destilando
o veneno da esperança, a invenção
de um jogo mais que jogo, para lá
do lume que gritava enquanto ardia
na bola de cristal. Ainda conheces
o assombro ou a doença a que chamavas
pensamento? Regressa, por favor,
não te escondas na montra dos sentidos,
no vão sabor do corpo. Não te agrada
o abraço das estrelas quando nascem?,
a rota universal do labirinto?


Pena Suspensa, Dom Quixote, Lisboa, 2004.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

JOSÉ MIGUEL SILVA

LADRÕES DE BICICLETAS — VITTORIO DE SICA (1948)


Mil quilómetros por dia pedalava meu pai, desde
a cama junto ao Douro até à próspera Cerâmica
de Valadares. Se qualquer homem recebe,
à nascença, uns sessenta inimigos por hora,
imaginem a jornada de um operário ciclista.
Tudo são despesas para ele: o rosário de geada
nas giestas, o jornal atropelado pelo vento, o verdor
da Primavera, a poalha do suor em cada mão.

Meu pai, é claro, não se queixa, ganha um conto
de réis, tem uma casa portuguesa e grandes sonhos
de amanhãs a gasolina. Pelo menos não trabalho
em nenhum matadouro, pensa ele, e com razão,
erguido nos pedais do seu veículo de sombra,
solitário trepador pela encosta de Avintes. Não
trabalha em nenhum matadouro. E nesse reconforto
passa à Quinta dos Frades, alcança o Freixieiro,
sente já o rumor de fumacentos camiões na nacional,
onde tudo, depois, será muito mais plano.


Movimentos no Escuro, Relógio d'Água, Lisboa, 2005.